Porque é que o ataque ao Charlie Hebdo não é uma questão de liberdade de expressão

O cartoon acima, da autoria de Joe Sacco e publicado no Guardian, explica, e bem, algumas questões que passam ao lado da discussão actual sobre o massacre de Paris.

Primeiro e antes de tudo, eu não lamento o ataque ao Charlie Hebdo, eu lamento a morte de inocentes, que são todos os que morreram no ataque. As vidas das pessoas foi o que se perdeu. Quanto a liberdade de expressão nada se perdeu e nada se ganhou. Á excepção de um aproveitamento político europeu e ocidental para mais uma vez dar palmadas nas nossas próprias costas e congratular-nos com a nossa superioridade moral.

O ataque ao Charlie Hebdo não foi um ataque à liberdade de expressão. Foi um ataque movido por um fanatismo espicaçado pelas atitudes de superioridade e imperialismo ocidental.

Esta notícia fresca é uma prova de como o ocidente não quer saber da liberdade de expressão para absolutamente nada.

http://www.publico.pt/mundo/noticia/blogger-saudita-que-insultou-o-islao-fustigado-com-50-chicotadas-1681778

E porque é que eu digo que não quer? Porque a Arábia Saudita é apenas o nosso maior aliado estratégico dentro dos países muçulmanos. Será que nos vamos manifestar contra isso? E será que vão haver 700 000 a manifestarem-se pela liberdade de expressão? Parece que não. No site da Human Rights Watch se fizermos uma procura por Saudi Arabia os resultados abundam e no entanto não há pudor em ser aliado de um país que viola de forma grave e constante os direitos humanos e, que eu saiba, nunca se falou em intervir seja de que maneira for neste país para o forçar a melhorar a sua conduta em termos de direitos humanos.
O facto do Charlie Hebdo ter despedido um cartoonista por ter ridicularizado os judeus é uma prova que nem o Charlie era assim tão livre. O que é natural, por um lado, mas altamente hipócrita por outro.
O facto de jornalistas australianos que denunciaram a invasão de Timor Leste pela Indonésia em 1975 terem sido assassinados por tropas indonésias, mostra também porque é que nós ocidentais temos pouca preocupação com a liberdade de expressão. Esta invasão da Indonésia foi sancionada, apoiada e militarmente financiada pelos EUA, o nosso grande aliado.

As mesmas notícias não chegam a todo o lado, significando isto que aquilo que é notícia por acontecer aqui não é notícia se acontecer noutro sítio. Isto não é liberdade de expressão. É selectividade de informação.

Liberdade, igualdade e fraternidade. Ideais da Revolução Francesa de 1789.

Há liberdade? De certa forma, sim, só para alguns, mas há.
Há igualdade? Não, não há. As noções que Edward Said defende no seu livro Orientalismo e nas suas palestras sobre o assunto deveriam ser revisitadas. Porque é que a percepção sobre o Oriente é tão má?
Há fraternidade? Não. Ao permitirmos a invasão de alguns países do Médio Oriente, ao permitirmos o imperialismo persistente, que resultados tão asquerosos deram em África, ao permitirmos que as violações dos direitos humanos sejam perpetradas muitas vezes por forças por nós apoiadas, ao olharmos de cima para baixo para o mundo islâmico, como se este fosse uniforme e todo igual, ao fazer isto tudo (e muito mais) não estamos a ter uma atitude de fraternidade. Estamos a ter uma atitude de desprezo, de domínio, por razões geo-estratégicas.

Onde está a fraternidade no meio disto tudo? Ao defender a noção da liberdade de expressão ter sido atacada estamos a cair na arena do aproveitamento político. Ver reacções de Marine Le Pen, por exemplo. E mais uma vez nós nos deixamos levar e deixamos as nossas emoções imediatas sobrepor-se à nossa racionalidade. Exigimos vingança. Exigimos mais sangue. Exigimos mais morte. Exigimos menos fraternidade.

Enquanto assim pensarmos nada vai mudar e se mudar não será para melhor. Ficam alguns vídeos e citações que talvez ajudem o mundo a tornar-se melhor.



"Folks: It’s time to evolve ideas. You know, evolution didn’t end with us growing thumbs. You do know that, right? Didn’t end there. We’re at the point, now, where we’re going to have to evolve ideas." - Bill Hicks

"Joy, daughter of Elysium
Thy magic reunites those
Whom stern custom has parted;
All men will become brothers
Under thy gentle wing.

Be embraced, Millions!
This kiss for all the world!
Brothers!, above the starry canopy
A loving father must dwell."

Ode to Joy - Original An Die Freude - Friedrich Schiller

Finalmente, e terminando com Beethoven, é chocante como as pessoas estão a mostrar-se consternadas e de seguida postam imagens do verniz que compraram. Ou da viagem que fizeram ou das fotografias que tiraram. A sério? Os sentimentos são sinceros? Há alguma preocupação? Há aí qualquer tipo de reflexão feita. Ou isto é apenas um fenómeno social? É como ir aos top trends do twitter e estar em primeiro #AnittaCabritaSempreImita? É o significado que isto tem?

Por isso deixo esta citação que reflecte aquilo que eu sinto.

“To play a wrong note is insignificant; to play without passion is inexcusable.” 
Dar opiniões fracas é uma coisa, mas não ter qualquer tipo de convicção e preocupação com as opiniões e os assuntos a que se referem é simplesmente indesculpável.

Suis je Charlie?

Pontos prévios.

-Condeno completamente o crime cometido em Paris e espero, sinceramente, que os perpetradores sejam capturados e julgados da forma que a nossa civilização publicita. Com justiça.
-Não. Não apoio qualquer acto de terrorismo, venha ele de onde for.

Posto isto, vamos seguir em frente.

Não me interessa questionar muitas coisas aqui. Aliás, não me interessa questionar de todo os factos. Foi um atentado, teve conotações islâmicas e atingiu um jornal mais ou menos polémico e controverso.

O que me interessa discutir é a nossa reacção. A nossa reacção é sempre a de condenar e ficar horrorizados e isto francamente é repugnante. A Europa é um lugar de onde são originárias algumas das maiores atrocidades da história (escravatura, guerras mundiais, colonialismo etc.) e, no entanto, é o continente mais pacífico do mundo. Os europeus ao longo dos anos cultivaram esta sensação de superioridade. Nós exploramos meio mundo, destruímos culturas inteiras, olhamos de cima para baixo para todos aqueles que não são europeus, somos os mais preocupados com as nossas fronteiras e somos o continente onde mais expressão é dada aos partidos de extrema direita, tão preocupados com as nossas pátrias que somos.

Dos romanos a Hitler. Destruição, alienação de culturas, escravização de povos inteiros, tráfico de humanos, eliminação de raças, inquisição, tudo isto, e muito mais, os europeus cometeram. Uma perpetuação de um poder imperialista. Vamos dispor de África como queremos. Dividimos isto aqui em partes proporcionais e isto é teu e isto é meu, porque que se lixe quem lá vive, dizem que nem são bem pessoas como nós.

Após tudo isto e nos tempos modernos a Europa é o maior apoiante das políticas terroristas dos nossos aliados EUA. Apoiamos a invasão do Afeganistão (18 000 civis mortos), apoiamos a guerra contra o Iraque (110 000 civis mortos), não somos firmes na questão Israelo-Palestiniana (só no ano passado, 2 000 mortos), deixamos os EUA conduzirem as hostilidades contra a Rússia apesar de sermos aqueles que mais vamos perder num potencial conflito (seja ele militar ou não).

Nós europeus estamos habituados a que nada nos aconteça e ficamos contentes em pagar um pouco mais de impostos, porque o terror não nos incomoda. O terror vivido diariamente no Médio Oriente e Ásia Menor não nos incomoda, aliás, é bem feito. Esses islâmicos que não são como nós. Ficamos contentes porque o Saddam Hussein foi deposto, porquê e para quê não interessa, eles vão ficar melhor assim. Agora têm o Estado Islâmico à porta? Mandam-se aviões. O que interessa é que depusemos um déspota que desrespeitou os direitos humanos. Mas não importa que sejamos aliados da Arábia Saudita, um dos países com mais atraso civilizacional no tratamento de homossexuais e mulheres, mas que interessa isso? O que nós queremos é combustível para o pópó andar.

A pobreza extrema a que votamos os países africanos que degeneramos ao longo de séculos não nos incomoda. A culpa é deles. Eles é que partiram tudo. Nós deixamos tudo direitinho e eles estragaram tudo. Não interessa que tenhamos uma atitude paternalista para com eles e que, basicamente, tenhamos desrespeitado completamente a cultura que já existia. Não interessa que tenhamos obrigado os países a avançar numa direcção que nos aprouvesse, mas que não fazia sentido nenhum na óptica dos países que colonizamos. Não interessa que os tenhamos escravizado e obrigado a um estilo de vida absolutamente deplorável e sem educação. Eles é que escolheram partir tudo e destruir tudo o que de nobre construimos.

Os europeus têm sempre a moral do seu lado. Nós fizemos tudo correctamente. Graças a uma união económica e de vontades que preserva a paz no nosso continente (e que nós muito criticamos e da qual muito nos queixamos) somos o continente mais avançado em termos civilizacionais. Este avanço está a fazer com que o europeu tenha a segurança como um dado adquirido independentemente das barbaridades que apoiamos. Estamos abstraídos do mundo e quando surgem estas situações só sabemos dizer QUE TERROR! ATROCIDADE! A NOSSA LIBERDADE ATACADA! QUE MUNDO É ESTE!?

Que mundo é este? É um mundo construído pela Europa, convém nunca esquecer, o ocidente (à excepção de algumas regiões como América do Sul) é uma obra europeia e nós não temos que lidar apenas com as coisas boas. Temos que lidar com as coisas más. E estes ataques, embora reprováveis, vão continuar a acontecer enquanto os europeus actuarem como se nada do que fizemos fosse mau. Fizemos muitas coisas más e as consequências vão chegar-nos de vez em quando. Mas mais importante do que perceber o terror que nos é infligido, temos que perceber o terror que se passa noutros lugares do mundo, nomeadamente África e Médio Oriente e no qual temos a nossa mão aprovadora.

Graças a essas acções dos nossos governantes, liderados por interesses um tanto ou quanto dúbios, inocentes morreram no crime cometido em Paris. Até quando é que vamos deixar os inocentes pagar sem fazer nada? Sem obrigar os governos a mudar para políticas mais justas e equilibradas, que não visem apenas o domínio de recursos e o apoio incondicional ao nosso aliado EUA? Em França houveram 12 Charlies. No Iraque, Palestina e Afeganistão já houveram mais de 130 000. Estes contam?