Já foi há praticamente um ano que se provou que na vida não há heróis.
Cresci a gostar de ciclismo e a ver as várias voltas que eram transmitidas pela RTP. Naturalmente assisti a todas as vitórias de Lance Armstrong, agora comprovadamente e admitidamente conseguidas através do recurso a doping.
Na altura em que as alegações começaram, em 1999, eu nem sequer sabia que elas existiam. A primeira vez em que tive contacto com alegações de doping deve ter sido por volta de 2004 ou 2005, em que apareceram notícias que alegavam que amostras de urina de 1999 continham EPO.
Nesse momento, lembro-me perfeitamente de o dizer à minha mãe, pensei que já se tinha passado tanto tempo e que isto era basicamente uma caça e uma tentativa de desgraçar um campeão comprovado.
Todo o problema deste assunto não se pode resumir apenas a Lance Armstrong. Deve-se resumir também à imprensa. Mas primeiro, o vilão.
Ao longo da história o ciclismo tem sido recorrentemente manchado por escândalos de doping. É uma modalidade dura e o Tour de France é considerada por muitos a prova desportiva mais dura do mundo. Anfetaminas, testosterona, esteróides, entre outros, eram as drogas de escolha para melhorar a performance. Seria possível dizer que Eddie Merckx, Jacques Anquetil e outros campeões do passado, tenham tomado este tipo de medicamentos e suplementos no seu tempo. Eu não vou defender o uso destas drogas mas há uma distinção a fazer entre estas drogas e a EPO. Antes da EPO as drogas que existiam ajudavam os ciclistas a atingir os seus limites mais rapidamente e facilmente. A EPO tornava ciclistas medianos em ciclistas fenomenais. Lance Armstrong, nunca foi um ciclista de elite, até se comprometer com o doping sistemático e com a ideia de que se ele se dopasse melhor que os outros, ganharia. A EPO e as transfusões de sangue tornaram Lance Armstrong um ciclista de elite e quase extraterrestre.
Há muita gente que tem a opinião seguinte "Ah, o Armstrong dopava-se, mas toda a gente fazia o mesmo". Isto não é bem verdade, muitos ciclistas se recusaram a tomar drogas para melhorar a sua performance. O que aconteceu foi que simplesmente não tinham qualquer hipótese de competir num pelotão em que maioritariamente os ciclistas se dopavam e muito.
Christophe Bassons, um ciclista que em 1999 tinha 25 anos, escrevia uma coluna para o jornal Le Parisien durante o Tour de 99. Ele escreveu que era impossível competir no Tour sem recorrer a doping e que as coisas estavam iguais e que nada mudara em relação aos anos anteriores. (Convém assinalar que em 99o Tour foi nomeado o Tour of Renewal pois em 98 deu-se um escândalo Festina em que grandes quantidades de substâncias dopantes foram apreendidas nos carros das equipas que corriam o Tour. 1999 era supostamente um ano de renascimento e de mudança)
No dia seguinte a essa coluna ter saído Lance Armstrong dirigiu-se a Bassons e disse (tradução livre) "O que disseste não é verdade, o que disseste é mau para o ciclismo, não o devias ter dito e não mereces ser um ciclista profissional, devias desistir, abandonar a carreira" terminando com um "Fuck you".
Isto à frente de todo o pelotão que nos dias seguintes tratou de dar o mesmo tratamento a Bassons que mais tarde abandonaria o tour e dois anos depois abandonou a carreira de ciclista aos 27 anos. Bassons era considerado um promissor ciclista com capacidades físicas naturais acima da média. Bassons foi obrigado a desistir do seu sonho porque simplesmente se recusou a drogar-se.
Outra coisa que se diz é "Não interessa o que tomam, interessa é ver um bom espectáculo". Já morreram ciclistas em circunstâncias estranhas após tomarem EPO. Para explicar convém clarificar o que faz a EPO. A EPO quando injectada induz a multiplicação de glóbulos vermelhos.. Estes glóbulos são os que transportam oxigénio aos músculos e que permitem mais esforços físicos e mais capacidade de esforço por mais tempo. Contudo, o aumento dos glóbulos vermelhos pode ser demasiado tornando o sangue demasiado grosso forçando o coração a mais esforço para bombear o sangue e, consequentemente, provocar paragens cardíacas mortais. Histórias se contam de ciclistas a levantar-se a meio da noite para fazer exercício físico para reduzir o nível de glóbulos vermelhos no sangue e evitar que esse nível suba demasiado.
Portanto a essas pessoas que apenas se interessam com o espectáculo deveriam pensar que um dia poderá ser o filho deles a chegar a esse ponto e a ligar para casa a dizer "Pai, se eu quiser perseguir o meu sonho tenho de tomar drogas". É um pensamento bastante trágico e triste.
Em cima de tudo isto há que ter em conta a personalidade de Lance Armstrong. Não é só o doping. Toda a gente que acusava Armstrong era vítima de um homicídio de carácter.
Emma O'Reilly era uma massagista de US Postal que revelou que Armstrong falsificou uma receita médica para encobrir um teste positivo de cortisona. Em resposta basicamente insinuou que O'Reilly era uma mulher que tinha tido casos sexuais com ciclistas e que por essas razões havia sido dispensada e que agora estava ressabiada e decidiu inventar essa história. Toda a gente acreditou no campeão que recuperou de cancro.
Betsy Andreu mulher de Frankie Andreu, ex colega de Armstrong, revelou que quando visitou Armstrong no hospital quando ele estava a ser tratamente ao seu cancro, ouviu Armstrong dizer aos médicos que já tinha tomado hormonas de crescimento, cortisona, testosterona e EPO. Armstrong limitou-se a dizer que ela era louca, e estava ressabiada porque o marido tinha sido dispensado pela equipa. Acompanhado de intimidações verbais e por escrito a Betsy e Frankie Andreu. Toda a gente acreditou no campeão.
Floyd Landis, ex-ciclista que pertenceu a uma das equipas de Armstrong revelou muitos detalhes da cultura de doping no ciclismo e concretamente de Armstrong. Lance procedeu a dizer que Landis estava ressentido e que era um renegado que havia testado positivo para doping e negado e que agora afinal admitia apenas por vingança. Toda a gente acreditou em Armstrong, excepto alguns investigadores do FBI que começaram a investigar e acabariam por destapar o véu de todos os esquemas de Armstrong.
Estes episódios, e muitos outros que não vou descrever, mostram aquilo que é pior acerca de Lance Armstrong. A sociopatia deste homem é incrivelmente profunda e o controlo da narrativa era essencial para ele, não interessa quem é prejudicado. Para Lance não há lugar para escrúpulos. Tem de ser tudo consoante a sua vontade.
Estas são as razões pelas quais é impróprio continuar a considerar Armstrong um campeão. A desilusão que ele provocou em muitos fans, como eu, e em muitos que sofrem de cancro, para quem ele era um exemplo, é maior do que se possa imaginar. Durante sete anos da minha juventude eu tive um herói que me fazia todos os dias pegar numa bicicleta e ir pedalar com tudo o que tinha. Tudo isso é basicamente apagado. Muito pior será para as vítimas de cancro que perdem uma pessoa para quem olhavam para ter esperança num futuro melhor.
Mas a cada um se dá o direito de julgamento, mas para mim a queda de Lance Armstrong apenas mostra que os heróis não o são.
Cresci a gostar de ciclismo e a ver as várias voltas que eram transmitidas pela RTP. Naturalmente assisti a todas as vitórias de Lance Armstrong, agora comprovadamente e admitidamente conseguidas através do recurso a doping.
Na altura em que as alegações começaram, em 1999, eu nem sequer sabia que elas existiam. A primeira vez em que tive contacto com alegações de doping deve ter sido por volta de 2004 ou 2005, em que apareceram notícias que alegavam que amostras de urina de 1999 continham EPO.
Nesse momento, lembro-me perfeitamente de o dizer à minha mãe, pensei que já se tinha passado tanto tempo e que isto era basicamente uma caça e uma tentativa de desgraçar um campeão comprovado.
Todo o problema deste assunto não se pode resumir apenas a Lance Armstrong. Deve-se resumir também à imprensa. Mas primeiro, o vilão.
Ao longo da história o ciclismo tem sido recorrentemente manchado por escândalos de doping. É uma modalidade dura e o Tour de France é considerada por muitos a prova desportiva mais dura do mundo. Anfetaminas, testosterona, esteróides, entre outros, eram as drogas de escolha para melhorar a performance. Seria possível dizer que Eddie Merckx, Jacques Anquetil e outros campeões do passado, tenham tomado este tipo de medicamentos e suplementos no seu tempo. Eu não vou defender o uso destas drogas mas há uma distinção a fazer entre estas drogas e a EPO. Antes da EPO as drogas que existiam ajudavam os ciclistas a atingir os seus limites mais rapidamente e facilmente. A EPO tornava ciclistas medianos em ciclistas fenomenais. Lance Armstrong, nunca foi um ciclista de elite, até se comprometer com o doping sistemático e com a ideia de que se ele se dopasse melhor que os outros, ganharia. A EPO e as transfusões de sangue tornaram Lance Armstrong um ciclista de elite e quase extraterrestre.
Há muita gente que tem a opinião seguinte "Ah, o Armstrong dopava-se, mas toda a gente fazia o mesmo". Isto não é bem verdade, muitos ciclistas se recusaram a tomar drogas para melhorar a sua performance. O que aconteceu foi que simplesmente não tinham qualquer hipótese de competir num pelotão em que maioritariamente os ciclistas se dopavam e muito.
Christophe Bassons, um ciclista que em 1999 tinha 25 anos, escrevia uma coluna para o jornal Le Parisien durante o Tour de 99. Ele escreveu que era impossível competir no Tour sem recorrer a doping e que as coisas estavam iguais e que nada mudara em relação aos anos anteriores. (Convém assinalar que em 99o Tour foi nomeado o Tour of Renewal pois em 98 deu-se um escândalo Festina em que grandes quantidades de substâncias dopantes foram apreendidas nos carros das equipas que corriam o Tour. 1999 era supostamente um ano de renascimento e de mudança)
No dia seguinte a essa coluna ter saído Lance Armstrong dirigiu-se a Bassons e disse (tradução livre) "O que disseste não é verdade, o que disseste é mau para o ciclismo, não o devias ter dito e não mereces ser um ciclista profissional, devias desistir, abandonar a carreira" terminando com um "Fuck you".
Isto à frente de todo o pelotão que nos dias seguintes tratou de dar o mesmo tratamento a Bassons que mais tarde abandonaria o tour e dois anos depois abandonou a carreira de ciclista aos 27 anos. Bassons era considerado um promissor ciclista com capacidades físicas naturais acima da média. Bassons foi obrigado a desistir do seu sonho porque simplesmente se recusou a drogar-se.
Outra coisa que se diz é "Não interessa o que tomam, interessa é ver um bom espectáculo". Já morreram ciclistas em circunstâncias estranhas após tomarem EPO. Para explicar convém clarificar o que faz a EPO. A EPO quando injectada induz a multiplicação de glóbulos vermelhos.. Estes glóbulos são os que transportam oxigénio aos músculos e que permitem mais esforços físicos e mais capacidade de esforço por mais tempo. Contudo, o aumento dos glóbulos vermelhos pode ser demasiado tornando o sangue demasiado grosso forçando o coração a mais esforço para bombear o sangue e, consequentemente, provocar paragens cardíacas mortais. Histórias se contam de ciclistas a levantar-se a meio da noite para fazer exercício físico para reduzir o nível de glóbulos vermelhos no sangue e evitar que esse nível suba demasiado.
Portanto a essas pessoas que apenas se interessam com o espectáculo deveriam pensar que um dia poderá ser o filho deles a chegar a esse ponto e a ligar para casa a dizer "Pai, se eu quiser perseguir o meu sonho tenho de tomar drogas". É um pensamento bastante trágico e triste.
Em cima de tudo isto há que ter em conta a personalidade de Lance Armstrong. Não é só o doping. Toda a gente que acusava Armstrong era vítima de um homicídio de carácter.
Emma O'Reilly era uma massagista de US Postal que revelou que Armstrong falsificou uma receita médica para encobrir um teste positivo de cortisona. Em resposta basicamente insinuou que O'Reilly era uma mulher que tinha tido casos sexuais com ciclistas e que por essas razões havia sido dispensada e que agora estava ressabiada e decidiu inventar essa história. Toda a gente acreditou no campeão que recuperou de cancro.
Betsy Andreu mulher de Frankie Andreu, ex colega de Armstrong, revelou que quando visitou Armstrong no hospital quando ele estava a ser tratamente ao seu cancro, ouviu Armstrong dizer aos médicos que já tinha tomado hormonas de crescimento, cortisona, testosterona e EPO. Armstrong limitou-se a dizer que ela era louca, e estava ressabiada porque o marido tinha sido dispensado pela equipa. Acompanhado de intimidações verbais e por escrito a Betsy e Frankie Andreu. Toda a gente acreditou no campeão.
Floyd Landis, ex-ciclista que pertenceu a uma das equipas de Armstrong revelou muitos detalhes da cultura de doping no ciclismo e concretamente de Armstrong. Lance procedeu a dizer que Landis estava ressentido e que era um renegado que havia testado positivo para doping e negado e que agora afinal admitia apenas por vingança. Toda a gente acreditou em Armstrong, excepto alguns investigadores do FBI que começaram a investigar e acabariam por destapar o véu de todos os esquemas de Armstrong.
Estes episódios, e muitos outros que não vou descrever, mostram aquilo que é pior acerca de Lance Armstrong. A sociopatia deste homem é incrivelmente profunda e o controlo da narrativa era essencial para ele, não interessa quem é prejudicado. Para Lance não há lugar para escrúpulos. Tem de ser tudo consoante a sua vontade.
Estas são as razões pelas quais é impróprio continuar a considerar Armstrong um campeão. A desilusão que ele provocou em muitos fans, como eu, e em muitos que sofrem de cancro, para quem ele era um exemplo, é maior do que se possa imaginar. Durante sete anos da minha juventude eu tive um herói que me fazia todos os dias pegar numa bicicleta e ir pedalar com tudo o que tinha. Tudo isso é basicamente apagado. Muito pior será para as vítimas de cancro que perdem uma pessoa para quem olhavam para ter esperança num futuro melhor.
Mas a cada um se dá o direito de julgamento, mas para mim a queda de Lance Armstrong apenas mostra que os heróis não o são.