No outro dia escrevi um post acerca da desilusão que represente Lance Armstrong.

Enquanto mantenho a ideia de que não há heróis, a verdade é que há alguns heróis que não são, nem devem ser, cantados ou louvados. E são estes heróis que vale a pena valorizar. E muito.

A história de Lancer Armstrong revela-nos um desses heróis. David Walsh.

Walsh é, hoje, o editor chefe de desporto do jornal Sunday Times. Irlandês na época das vitórias de Armstrong era apenas jornalista do Sunday Times. Walsh, amante de ciclismo, nas primeiras férias que passou fora do país arranjou uma mota e foi para França para seguir o Tour de France como fan.
Passados uns tempos começou a cobrir a competição como jornalista e passou a cobrir outros eventos extra ciclismo.

Em 1998 dá-se o escândalo Festina no Tour. John Wilcockson, jornalista também do Sunday Times, deu pouca importância ao escândalo e continuou a escrever para Londres quase como se nada se tivesse passado. O jornal em 1999 decide que para além de Wilcockson iria enviar Walsh para certificar-se do que se passava e ter uma cobertura mais real e honesta da corrida.

O Tour of Renewal, como foi apelidado pelos organizadores da corrida, visava lavar a cara de uma competição que tinha sido gravemente afectada em termos de reputação no ano anterior. Os organizadores disseram que, como não iriam haver drogas na corrida a mesma iria ser mais lenta que as dos últimos anos.

Armstrong na etapa que termina em Sestriére, uma etapa de montanha com alto grau de dificuldade, faz um ataque, ganha a etapa e passa de ciclista irrelevante que em quatro edições apenas tinha chegado ao final da corrida uma vez e em 36º, a candidato à vitória com um ataque impressionante e do qual não seria capaz em condições normais. De acordo com Walsh, na sala de imprensa toda a gente riu sarcasticamente, numa clara demonstração de que era inacreditável que Armstrong estivesse limpo e a fazer aquele ataque. Armstrong ganhou e David Walsh na sua coluna escreveu

 “There are times when it is right to celebrate, but there are other occasions when it is equally correct to keep your hands by your sides and wonder… [and in this case] the need for inquiry is overwhelming.” 

Este Tour tinha sido o mais rápido de sempre e vencido por um ciclista improvável que era especialista em pequenas provas e nunca havia sido forte nem no contra-relógio nem nas montanhas.

David Walsh então prosseguiu na sua perseguição por provas que mostrassem que Armstrong havia dopado. Obteve testemunhos de várias pessoas que já tinham ouvido Armstrong admitir o uso de doping e a incentivar o mesmo, publicou artigos, publicou um livro, questionou Armstrong, foi ameaçado pelos agentes de Armstrong, sofreu discriminação por parte dos ciclistas que não falavam com ele por causa da sua activa posição anti doping, sofreu discriminação de jornalistas que se recusavam a comparecer publicamente com ele, com medo de serem associados com o jornalista com quem ninguém queria falar. No carro em que costumava seguir para acompanhar as provas os jornalistas a certo dia, sem aviso prévio, recusaram-se a levá-lo, deixando-o numa posição muito complicada, pois dadas as restrições só carros autorizados é que poderiam seguir até aos finais de etapa e para um jornalista é complicado não ter esse acesso.

A minha admiração por David Walsh, mais do que no final todos terem de lhe dar razão, é o facto de ele ter continuado a dizer, a escrever e a perseguir aquilo em que acreditava. Não cedeu aos contos de fadas. Não cedeu à necessidade de acesso aos ciclistas, que implicava que os jornalistas fossem favoráveis aos ciclistas nas suas peças para poder obter entrevistas com eles que, naturalmente, atraem sempre mais atenção do que artigos sobre doping.

Ao passo que Walsh escrevia aquilo em que acreditava outros, nomeadamente Wilcockson, escreviam livros acerca das grandes vitórias de Armstrong e exultavam este herói com pés de barro, apesar das provas apresentadas por Walsh. Porque era mais fácil acreditar no mito. Era o que toda a gente queria ler.

Vivemos a acreditar que os jornalistas nos trazem os factos mais verídicos das histórias. O relato mais preciso dos acontecimentos. Independente e conciso. Mas neste caso só um, das centenas de jornalistas que cobrem o Tour é que seguiu um caminho diferente. Os outros, todos escreveram que acreditavam, que era maravilhoso, fantástico. Digno de um conto de fadas. Porque era isso que toda a gente queria ler. No que me lembra de ver das transmissões da RTP do Tour, não me lembra de ouvir Marco Chagas ou o João Pedro Mendonça a referir estes casos. Não me lembro de ler em lado nenhum nada acerca do estranho que é um ciclista irrelevante, tornar-se um mítico vencedor do Tour, sete vezes consecutivas.

Afinal jornalismo é contar a verdade ou é um exercício de alimentação de sonhos de quem está no lado receptor das notícias?

Em relação a jornalistas desportivos David Walsh descreve na perfeição o que a maior parte deles são

"Fans with a typewriter"

É errado louvar Walsh só porque ele tinha razão. Afinal de contas, ele apenas fez o seu trabalho, que é para isso que lhe pagam. Ele próprio tem recusado aparências e pedido para que não estejam a tratá-lo como um herói, pois Armstrong também era um herói. E era um herói cada vez mais heróico na proporção em que as pessoas elevavam-no cada vez mais e quanto mais alto cada vez é menor a vontade e habilidade de questionarmos.

Mas nutro imenso respeito por David Walsh. Ele fez aquilo em que acreditava e não se desviou do seu caminho só porque seria mais fácil e mais bonito.

Aconselho quem tiver interesse em saber um pouco melhor a história de David Walsh a ver este vídeo que aqui deixo.