O Cante e o (en)Fado

Estas duas formas de expressão foram reconhecidas como Património Imaterial da Humanidade. Nada contra.

O que eu tenho contra, e muito, é de repente a importância nacional que estas expressões adquirem. Subitamente, são motivo de orgulho para os portugueses. Não só aqueles que são do Alentejo, ou de Lisboa/Coimbra, mas sim de todo o país. De todos os habitantes de Portugal. E contra isso tenho tudo.

Em muitos, aliás, na maior parte de Portugal, o fado (já nem vou falar do cante), não é ouvido com regularidade e muito menos reproduzido com qualquer tipo de frequência. Aqui e ali há um programa de rádio, numa hora muito concreta, que transmite fado, mas não mais do que isso. Sou então, agora, obrigado a confrontar-me com algo que não faz, nem nunca fez, parte da minha educação cultural, só porque é Património Imaterial da Humanidade? Ou será porque o Carlos do Carmo ganhou um Grammy Latino?

Poderiam dizer-me que é apenas uma questão de levar o fado a todas as pessoas que o querem ouvir. Só que não é apenas isso. Se fosse isso para mim era igual, porque basta-me não ir. Agora ver festivais de fado em locais onde raramente se ouvia falar de fado, pretensas casas de fado a abrir aqui e ali onde não faz sentido nenhum que as mesmas existam, já para não falar da falsidade das mesmas. Afinal, estas expressões têm na genuinidade um bem fundamental (a meu ver) para a sua existência e valorização. Há necessidade de disseminá-las e plantar na cabeça da população que fado é Portugal? Há necessidade de generalizar uma expressão cultural a todo o país? Especialmente quando há outras formas de expressão igualmente válidas.

Não seria melhor conservar o fado, onde ele é intrínseco?

Mas não, vamos obrigar toda a gente a ouvir falar do fado aqui e do fado ali e que o fado é Portugal e vamos generalizar ainda mais a população. Somos todos portugueses e gostamos todos de fado e temos todos o fado em nós. E quando estamos a tomar o pequeno almoço optamos antes pelo cante alentejano com torradas.

E tudo é desculpa. Tudo serve a para insuflar as percepções.

"Oh o Carlos do Carmo ganhou um Grammy, Laticno, mas é sempre um Grammy."
Pois, mas a verdade é que nunca ninguém ligou patavina aos Grammys Latinos. Alguém sabe quem foram os vencedores anteriores do prémio? Não, e muito normalmente, porque ninguém-quer-saber! Mas, afinal é importante. Convenientemente importante.

Em reflexão, e notem que critico essencialmente as questões que têm a ver com o fado, o que eu penso é que tudo isto é um produto da centralização de poder e opinião na capital. Tudo o que vem de Lisboa, é ouro.

Um pouco off-topic, mas que serve de perfeito exemplo, onde vivo já tive cheias que me obrigaram a andar em gôndolas improvisadas para tentar ajudar a evacuar uma garagem, mas nunca foi notícia, mas quando é em Lisboa, são quinze, vinte, vinte e cinco minutos de notícias a mostrar todas as avenidas, descritas de forma quase familiar, como se fosse suposto todos os portugueses conhecerem aquelas avenidas em que nunca passamos e que possivelmente nunca vimos. É quase revoltante. No mesmo dia, houve cheias em muitos sítios, mas Lisboa (ou lesboa, como muitos jornalistas pronunciam), porque todos os lisboetas disseram que nunca viram nada assim, não saiu das notícias. E o fado é igual. Vem de Lisboa (essencialmente) então é de todo o país.

Está errado e é mais um exemplo da mediocridade intelectual da nossa sociedade.

Bill Hicks



Hoje quero falar de Bill Hicks. Já havia postado aqui duas citações dele anteriormente, mas hoje gostaria de falar mais em profunidade sobre esta pessoa.

Bill Hicks, resumidamente, era um comediante norte americano de stand up. Fez parte dos Outlaw Comics em Houston nos anos 80 e destacou-se por si só após isso, sendo considerado uma das maiores promessas da comédia americana, tendo algum sucesso nos EUA. Em Inglaterra teve muito sucesso, contudo, após o grande sucesso que experienciou nunca teve oportunidade de voltar pois viria a morrer em 1994 aos 32 anos.

Os temas de Bill Hicks, inicialmente eram os coloquiais temas de stand up. Situações diárias com a família, com os amigos, com os seus animais. O típico stand up comum de se ver em qualquer lado.
Contudo, Bill Hicks, sendo uma pessoa extremamente inteligente, não demorou a tornar a sua comédia mais "séria". Temas como a guerra do Vietname, a Guerra do Golfo, consumismo, controlo político da informação, mediocridade artística, marketing, drogas, fanatismo patriótico e religioso, entre outros, tornar-se-iam os temas fulcrais das suas actuações.

O que é que para mim separa Hicks de todos os outros. Hicks conseguia fazer com que temas sérios fossem tratados de forma intelectualmente acutilante, sem perder a graça, mas sem entrar em devaneios irrealistas. Com isto não quero dizer que tudo o que Hicks dizia era 100% verdade, mas eram dramatizações perfeitamente possíveis.

É incrível como a comédia de Hicks é intemporal. Tomemos os seus comentários sobre a Guerra do Golfo e, não soubéssemos nós a data, poderíamos pensar que ele estaria a falar da Guerra no Iraque em 2003.

"Remember how it started, they kept talking about ‘the Elite Republican Guard’ in these hushed tones like these guys were the bogeymen or something. Yeah, we’re doing well now, but we have yet to face-THE ELITE REPUBLICAN GUARD. Like these guys were twelve feet tall, desert warriors. KRRASH. NEVER LOST A BATTLE! KRRASH. WE SHIT BULLETS! Yeah, well, after two months of continuous carpet bombings and not one reaction at all from them, they became simply, ‘the Republican Guard.’ Not nearly as elite as we may have led you to believe."

Substituam Reagan, Bush e Clinton, por W. Bush e Obama, e tudo funcionaria na mesma.


Na área não política, possivelmente estaremos a falar de coisas mais subjectivas, mas as diatribes de Hicks contra a mediocridade na música e a contaminação do mundo artístico pela publicidade, acertam em cheio. Substituir New Kids On The Block, Michael Bolton e Marky Mark por Bieber, Beyoncé etc e continua tudo a ser actual. A mediocridade, o marketing e as estrelas construidas, com as mesmas ideias e imagens semelhates.
"Ball-less, soul-less, spiritless corporate little bitches! Suckers of Satan's cock, each and every one of them"

Hicks nunca abdicou da sua coerência em favor de nada. Apesar de ter olhado sempre para Jay Leno como um exemplo, não hesitou em ridicularizar Leno após o mesmo ter feito um anúncio de Doritos.
 "Do a commercial and you are off of the artistic roll call, every word you say is suspect, you’re a corporate whore and uh, end of story"

Bill Hicks em linha com a visão que tinha da arte, tinha a mesma opinião sobre o marketing para as massas.
"By the way, if anyone here is in marketing or advertising...kill yourself. Thank you. Just planting seeds, planting seeds is all I'm doing. No joke here, really. Seriously, kill yourself, you have no rationalisation for what you do, you are Satan's little helpers. Kill yourself, kill yourself, kill yourself now. Now, back to the show. Seriously, I know the marketing people: 'There's gonna be a joke comin' up.' There's no fuckin' joke. Suck a tail pipe, hang yourself...borrow a pistol from an NRA buddy, do something...rid the world of your evil fuckin' presence."

A comédia  e a filosofia de Hicks residem apenas na vontade própria de cada um, com a certeza de ver o mundo com mais clareza do que os outros. Bill Hicks conseguia dar um passo atrás e observar o mundo à distância, com lucidez, não se deixando enganar pela propaganda, não deixando de questionar tudo o que não fazia sentido com sua forma de viver, não se deixando levar por aquilo que a maioria diz que é certo.
"But you know, I saw this movie last year called Basic … Instinct. Okay. Now, Bill's quick capsule review: Piece of shit. Okay, now … yeah, yeah. End of story, by the way. Don't get caught up in that fevered hype phoney fucking debate about that piece of shit movie. "Is it too sexist? And what about the movies, are they becoming too …" You're just confused, you've forgotten how to judge correctly. Take a deep breath … look at it again. "Oh, it's a piece of shit!" Exactly, that's all it is. Satan squatted, let out a loaf, they put a fucking title on it, put it on a marquee – Satan's shit, piece of shit, walk away. "But is it too … and what about the lesbian content, they …" You're getting really baffled here. Piece of shit! Now walk away. That's all it is, it's nothing more! Free yourself, folks. If you see it: "Piece of shit!" Say it and walk away. You're right! You're right, not those fuckers who want to tell you how to think! You're fucking right!"

Para mim, a honestidade intelectual é o que mais me fascina neste comediante. Não concordo com tudo. Algumas opiniões acerca de drogas, tabagismo entre outros assuntos não são de todos coisas que defenderia, mas podemos sempre contar com ressalvas e, mesmo sem elas, o material continua a ser engraçado desde que entendamos que no fundo está uma mensagem de liberdade.

Nos seus anos finais, sofrendo de cancro do pâncreas, continuou a dar espectáculos, com segurança suficiente para em cada um deles afirmar que cada um seria o seu último espectáculo, sem que o público soubesse que ele estava doente. Apenas a família sabia da doença e sabia que a mesma era terminal.
Apesar de saber que a morte se aproximava rapidamente, continuou a trabalhar atá não poder mais. O último espectáculo que deu foi em Janeiro de 94, quando já se encontrava visivelmente debilitado. Passados dias perdeu a fala e viria a morrer em Fevereiro.

A morte não o propulsionou para a fama. As pessoas que gostam e que descobrem hoje, descobrem porque tropeçam neste comediante quando ouvem alguém falar. No meu caso só tomei conhecimento através do "John Cleese's Heroes of Comedy"

Muitas citações poderia deixar aqui, mas vou deixar aquela que eventualmente se tornou a mais famosa e uma das que mais vale a pena ouvir e pensar e as últimas palavras que ele desejou que fossem lidas no seu funeral

The World is like a ride in an amusement park, and when you choose to go on it you think it's real, because that's how powerful our minds are. And the ride goes up and down and round and round, and it has thrills and chills and is very brightly colored, and it's very loud. And it's fun, for a while.

Some people have been on the ride for a long time, and they've begun to question, 'Is this real, or is this just a ride?', and other people have remembered, and they've come back to us and they say 'Hey, don't worry. Don't be afraid, ever, because this is just a ride.' and we KILL THOSE PEOPLE.

"Shut him up! We have alot invested in this ride! SHUT HIM UP! Look at my furrows of worry. Look at my big bank account, and my family. This just has to be real."

It's just a ride.

But we always kill those good guys who try and tell us that. You ever noticed that? And let the demons run amok. But it doesn't matter, because ... It's just a ride.

And we can change it anytime we want. It's only a choice. No effort, no work, no job, no savings of money. A choice, right now, between fear and love. The eyes of fear wants you to put bigger locks on your door, buy guns, close yourself off. The eyes of love, instead see all of us as one.

Here's what we can do to change the world right now, to a better ride:

Take all that money we spent on weapons and defense each year and instead spend it feeding, clothing, and educating the poor of the world, which it would many times over, not one human being excluded, and we can explore space, together, both inner and outer, forever ... in peace.

Bill Hicks (1961 - 1994)
(últimas palavras)
"I left in love, in laughter, and in truth, and wherever truth, love and laughter abide, I am there in spirit."