Quando estamos nestes dias de Inverno, muito frios e de sol no céu, por volta das oito da manhã recordo-me sempre de várias coisas.
O ar da manhã faz-me lembrar quando tinha uns quatro anos e estava com o meu irmão à beira da estrada e os dois fazíamos um jogo em que, à vez, construíamos a nossa garagem ficando com os carros que aleatoriamente nos passavam à frente. Um para mim, um para ti. No fim quando estava para chegar a carrinha discutíamos quem tinha ficado com os melhores.
O ar da manhã faz-me lembrar quando a minha mãe me levava pela mão até à casa do Sr Chiquinho e da Dona Sãozinha. Ficava lá a brincar com a neta dela até ser hora de ir para a escola, enquanto os avós comiam papas ao pequeno-almoço eu brincava com uma moto quatro de plástico enquanto a neta deles brincava com as bonecas.
O ar da manhã faz-me lembrar quando por vezes, entre os 8 e 9 anos a minha mãe me deixava faltar às aulas. Principalmente à Sexta Feira, dia em que a minha mãe só trabalhava de manhã e à tarde ia sempre dar uma volta a uma feirinha. Eu dizia que me doía a cabeça e a minha mãe resistia muito mas acabava por me deixar ficar. O que eu queria era ir passear com ela à tarde.
O ar da manhã faz-me lembrar os Domingos em que me levantava às sete para ir com o meu pai à missa. Íamos a ouvir a rádio da região e eu ia sempre com as mãos debaixo das pernas para aquecer. No fim íamos comer as torradas maravilhosas feitas pelo Sr António no Café Vitória. Fazíamos uma raspadinha e outra se ganhássemos, e depois íamos para casa.
O ar da manhã faz-me lembrar aqueles dias da semana frios em que eu tinha de me levantar para ir para a escola. Agasalhava-me muito mas estava sempre frio da ponta do nariz às pontas dos dedos. Ia para escola ter aquelas aulas de educação física mesmo pela manhã numa escola onde era bastante gozado e de vez em quando lá tinha que distribuir chapada.
O ar da manhã faz-me lembrar quando já no décimo ano ia para a escola que era no ponto mais alto da cidade. E tinha que caminhar por aquelas ruas da minha querida cidade com belas casa à volta, para as quais não conseguia resistir a dar uma espreitadela, pensando como seria a minha casa e como seria a minha esposa.
O ar da manhã lembra-me de quando ia ter com um amigo meu para irmos juntos para a escola e sempre que passávamos por uma pastelaria em especial ficávamos mal dispostos pelo cheiro esquisito que vinha de lá de dentro. Lembra-me de ter ganho juízo e passei a gozar com aqueles que gozavam comigo. E passei a ignorar todas as pessoas que não me diziam nada, que era basicamente toda a gente.
O ar da manhã lembra-me de uma manhã fria em que me levantei às sete numa folga para ir ter com o meu amor que não via há três meses. Lembra-me de esperar junto a uma árvore com a ânsia de a ver aparecer naquela esquina e a conter-me para não correr para lá.
O ar da manhã lembra-me que desde o dia em que eu ficava a contar os carros já passaram 20 anos e eu nem dei por isso. Agora o ar da manhã apenas significa que tenho de ir para a cama dormir enquanto o sol se põe alto. E acordar, muitas vezes, quando ele já se pôs. De certa maneira fico triste, mas ao mesmo tempo fico feliz. A cada passo que dou sem rede cada vez mais me convenço que aquilo que fiz, fiz bem e se não fiz melhor foi porque não pude. Tenho cada vez mais a certeza que fiz as escolhas certas e que durante os quase 24 anos que passaram fui sempre aquilo que realmente sou. Nunca verguei a nada que não quisesse e isso fez de mim um lobo quase completamente solitário. Sem ninguém a quem contar as minhas alegrias muitas vezes e sem ninguém a quem confessar as minhas mágoas. Durante muito tempo foi só a minha mãe que ouviu os meus desabafos quando eu já pouco mais podia aguentar.
Só porque vocês que fazem parte desse mundo de palhaçada não conseguem aguentar uma única pessoa que seja diferente de maneira alguma. Não conseguem aguentar aqueles que não fazem parte do estereótipo. Não conseguem aguentar qualquer discussão fundamentada em que não têm razão e então a solução é espezinhar. Espezinhar e mais espezinhar. Só que eu tenho uma notícia para vós. Eu ainda aqui estou. Com um bom trabalho e com um salário seguro que dobra o mínimo todos os meses. E vocês, pessoas de merda, acabais a trabalhar em caixas de supermercado a implorar por segurança e por saída da precariedade. Acabais a trabalhar em fábricas onde sois autênticos escravos a trabalhar uma e duas e três horas a mais por dia por uns míseros euros. Acabais o dia no café a dizer merda e a ver futebol e a ser parte do estereótipo. Acabais a chegar a casa e bater nas namoradas ou mulheres porque simplesmente não sabeis digerir as coisas.
Eu engoli muito sem responder porque não vale a pena responder a todas as parvoíces. Não me orgulho de estar por cima. Orgulho-me de poder dizer que praticamente durante toda a minha vida apenas fiz o que quis. E posso estar quase sozinho. Mas nunca estive e nunca estarei sozinho. E pode até acontecer-me muita coisa má, mas ao menos orgulho-me por ser quem sou e nada mais. E peço desculpa a todas as pessoas que magoei sem intenção. Mas se o fiz foi para, muitas vezes, não ser ainda pior.
E aviso que há pelo mais uma pessoa da minha espécie.
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